quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Dando a Elza


A carne mais barata do mercado é a carne negra



Hoje o assunto é sério e ninguém deve rir. Vou colocar um pouco da história de uma das maiores artistas brasileiras. Toda vez que Elza canta este trecho que coloquei no título dessa postagem - sobre a carne mais barata, eu fico completamente desnorteado com tamanha emoção que preenche meu corpo.

Falar que Elza Soares é uma das maiores cantoras de samba de todos os tempos é pouco. É uma generalização que não precisa com justiça o seu grande diferencial em relação às outras e aos outros. A começar pelo instrumento vocal singular que a natureza lhe deu. Não é qualquer um que tem a qualidade de sua voz. Para minha felicidade, pude conferir pessoalmente. É uma voz rouca, rasgada, de grande extensão e de tonalidade extremamente agradável. Sem contar a história de vida, lavadeira e operária numa fabrica de sabão e aos 12 anos já era mãe e aos 18, viúva.

Deixo aqui alguns trechos de uma entrevista que gosto muito, falando um pouco sobre dois momentos da história de Elza: seu encontro com Louis Armstrong e como foi “sua primeira vez” no palco, com Ary Barroso.


Você conheceu o Louis Armstrong também em 1962, lá na Copa do Mundo do Chile, não foi?


Elza - Eu fui a madrinha da Copa do Mundo. E ganhei a Copa... (rindo) Ele me chamou de "my daughter" e eu não entendia nada de inglês, e aquele negrão lá na minha frente que mais parecia o Monsueto. E, depois de me ouvir, ele ficava falando "yes, she is my daughter". Eu eu dizia "mas que coisa, esse homem me chamando de doutora (doctor) o tempo todo". (risadas) E eu dizia para o cara ao meu lado, "diz pra ele o meu nome porque ele insiste em me chamar de doutora". E então eu perguntei ao intérprete "por que ele está me chamando de doutora". E ele me falou "não Elza, ele está te chamando de filha porque "daughter" em inglês quer dizer filha". "Oh!!! É mesmo!", disse eu.


Que honra deve ter sido quando você percebeu isso.


Elza - Mas eu nem sabia de quem se tratava. Imagina uma ex-favelada, uma ex-menina de rua, uma ex-faminta, grandiosa lá no Chile, madrinha da Seleção Brasileira de futebol, ver um músico assim te chamar de filha. Mas, como é que eu iria saber que ele era o Louis Armstrong, se eu nem o conhecia? Lá na minha casa não havia rádio, não havia nada. São coisas dos deuses que ninguém pode explicar.


E depois que você começou a entender do que se tratava?


Elza - Aí o tradutor que estava comigo falou pra mim "Elza, faz um carinho nele". Eu falei para o intérprete "você tá brincando, esse homem parece um armário; por onde eu começo a fazer carinho nele?" (risadas) E o intérprete insistia "vai lá e passa a mão nele". E eu disse "hummmmm...". Então o tradutor disse, "melhor, vai lá e chama ele de "my fóder" (father). E eu disse "tú é doido cara, não é porque ele me chamou de 'doutora' o tempo todo é que eu vou xingar o homem agora". Eu disse, "não vou falar o fóder não". E ele insistia "vá e diga fóder". E eu dizia "não, não vou mandar o cara se fóder não". (risadas)

Bem, aí eu cheguei perto dele... Me lembro da figura dele ue era linda, eu até tenho uma foto minha com ele na minha casa, e eu cultuo aquilo como um presente do papai-do-céu. Aí o intérprete me perguntou "você não sabe o que é father?" (e não fóder) Eu disse "sei todo mundo faz, mas não preciso dizer isso pra ele". Então eu fui, cheguei pra ele e disse "my father". Então ele sorriu e me abraçou com todo o carinho e disse "yes, you're my daughter". Então eu perguntei baixinho ao intérprete o que era "father" e ele me disse que era o mesmo que pai. Eu pensei "Ah! Então é isso! Pai fóder e faz filho". (risadas) Mas, foi tudo bem legal.

Que ótima essa história. Você teve um outro contato com ele depois disso?

Elza - Sim, depois nós fomos juntos para o México porque ele queria me levar para a Georgia. Eu só não fui porque eu estava com os filhos pequenos e eu estava começando uma vida nova. E quando você está ganhando, você tem muito medo de perder. E ali, naquele momento, tudo para mim era o Moreira da Silva, era a Silvinha Telles, não era o Louis Armstrong. Eu não o conhecia. Depois é que eu fui saber quem era o Louis Armstgrong e comecei a conhecer os artistas estrangeiros.

CALOURA DE RÁDIO DE ARY BARROSO


Foi nessa época que o Moreira da Silva te levou para um programa de rádio?

Elza - Ele me levou para o "Aerton Pé Ligeiro". Inicialmente, eu mesma fui para a Rádio Mauá trabalhar com o Hélio Ricardo. E o Moreira da Silva, me ouvindo da casa dele, pediu que eu aguardasse. Então ele me apresentou ao Aerton, da Rádio Tupi. E foi na Rádio Tupi que eu comecei a brotar.

A Rádio Tupi naquela época (1960) era a grande rádio. Era como se fosse a Rede Globo das rádios?


Elza - Era uma coisa assim. A Tupi era "a Radio". Antes eu já havia cantado no programa de calouros do Ary Barroso. Que também foi uma humilhação. Na época, eu pesava uns trinta e poucos quilos. Eu me inscrevi no programa de calouros do Ary Barroso. A exigência deles era que eu viesse bonita. Eu falei "bonita como?" Então eu peguei uma saia da minha mãe, uma camisa e uma porção de alfinetes. Enrolei bastante a saia e a blusa e fui pondo alfinetes nos panos que sobravam.

Então cheguei no programa do Ary Barroso, fiz o teste com o regional Cruz e Toco Preto, mas eles fizeram uma maldade comigo e me deram um tom acima. Mas a minha voz era pura e limpa, não havia poluição, e então não havia o que segurasse a minha voz. Aí eu subi o tom. Então eles todos ficaram surpresos "meu Deus, de onde veio essa voz?".

Mas por mais que eu pense nisso, eu ainda acho que eu não sei nada. Enquanto estamos vivos, temos muito o que aprender. E eu tinha achado que tinha cantado pessimamente mal, mas os músicos me trataram com muito carinho e ficaram me protegendo.

E como era o Ary Barroso?

Elza - Ele era um mineiro daqueles bem tradicionais. Parecia um tipo chato, tinha um narigão, usava um oculós pequeno na ponta do nariz, e chamava todo mundo de "meu filho e minha filha". Para se apresentar lá, a primeira coisa que você tinha de saber eram os nomes dos autores da música que você ia cantar. E isso eu gravei logo.

Aquilo parecia um corredor da morte. Ficava todo mundo sentado nuns banquinhos e ele chamava, "senhor fulano de ta!". Mas o que me fazia sentir muito alegre ali eram os calouros gongados. Eu morria de rir quando alguém levava um gongo (e era desaprovado por ele). O susto que os calouros tomavam era engraçado, eles davam um pulo na hora do gongo. Parecia que eles levavam um tiro ou um choque elétrico. E eu ria de chorar. Mal sabia eu que na minha hora, iria ser uma coisa terrível.

E como foi quando chegou a sua vez?

Elza - Ele chamou "Elza Gomes da Conceição". Eu não disse Elza Soares porque eu pensei que fossem descobrir lá em casa. Era inocência minha. Mas já tinha nascido o meu filho porque eu me casei com doze para treze anos. E o meu filho precisava de dinheiro, eu precisava muito de dinheiro. Depois dele me chamar, eu fui andando feito donzelinha para o palco. Então, quando eu subi no palco o auditório deu uma sonora gargalhada. Eram mais de mil pessoas presentes; aquilo na Rádio Tupi era o Maracanã dos auditórios.

Quando eu vi todo mundo rindo de mim... E o Ary Barroso ali parado no piano, ele puxou os óculos, ficou me olhando, não me chamava, não dizia nada, e eu parada... Eu fiquei esperando ele me chamar de "minha filha", mas ele não disse. A coisa estava muito feia pra ele me chamar de filha. (risadas) Ele já me via como um ET. Então ele disse "aproxime-se", assim duro e frio. E as pessoas rindo muito, mas eu nem aí, com aquela saia cheia de alfinetes e duas maria-chiquinhas no cabelo. Eu deveria ter uma foto porque realmente era uma coisa muito esquisita. Então fui me aproximando dele, deixando todos rirem muito, sem olhar para o auditório. Fiquei parada perto dele, olhando para ele.

Qual foi a reação dele?

Elza - Ele me disse "o que é que você veio fazer aqui?" Eu disse "ué, eu vim cantar". "Mas quem disse a você que você canta?", ele me perguntou. Eu disse, "eu!". Então ele me perguntou "mas me diga uma coisa, de que planeta você veio?". Ah, aquilo me feriu, aquilo bateu no ego.

E a platéia a essa altura?

Elza - Rindo muito às gargalhadas porque aquilo era muito cômico. Então eu disse a ele: "Sr. Ary Barroso, eu estou vindo do planeta fome, do mesmo planeta seu". Aí todas as pessoas no auditório ficaram quietas. Antes dele me perguntar os nomes dos autores, eu disse o nome deles.

O que é que você cantou?

Elza - Eu cantei "Lama", mas eu não me lembro os nomes dos autores. E tinha um neguinho que ficava segurando um pau para soar o gongo. Então eu disse ao Ary para ele tirar aquele neguinho com aquele pau na mão porque ele não iria precisar usar aquilo, ele não iria me gongar.

Aí comecei a cantar mas, na metade da música, eu me lembrei do que eu aprendi a fazer com a lata d'água (cantando com a voz roca e arranhada). E cantei a música inteira assim. O auditório, que a princípio estava rindo muito, parou. Ficaram quietos e depois começaram a aplaudir. Foi a primeira vez que eu senti uma sensação de ódio.

Mas ódio por que se eles riram e depois te aplaudiram?

Elza - Era uma sensação de hipocrisia, mas eu também não sabia explicar, porque eu era muito criança apenas com treze anos. Eu achei aquilo uma crueldade, meu filho estava entre a vida e a morte; eu mãe, sendo apenas uma criança, tentando ganhar aquele dinheiro. Mas eu fui aplaudida de pé e o povo gritava e delirava. Eu terminei de cantar deitada no peito do Ary Barroso. Ele não resistiu e me abraçou. Então ele disse, "Senhoras e senhores, neste exato momento acaba de nascer uma estrela".

Agora você imagina a minha inocência, eu fiquei olhando pra cima pra ver onde estava nascendo a tal da estrela. (risadas) Eu até queria perguntar pra ele de que estrela ele estava falando, mas eu estava chorando, me desmanchando em lágrimas. Então eu ganhei nota cinco, que era o máximo. Andei de taxi pela primeira vez na minha vida para pagar na outra quarta-feira.

Você ganhou dinheiro também?

Elza - Naquele dia eu só ganhei a nota cinco, o dinheiro eles pagaram na semana seguinte. Quando eu cheguei em casa, estava todo mundo me esperando na porta. E o motorista de taxi disse a eles que "o Sr. Ary Barroso me pediu para trazer a menina porque ela é uma estrela". Na semana seguinte, fui lá pegar o dinheiro, e aquela figura bonita (Ary Barroso) ficou sendo meu amigo por muitos anos. Ele estava presente em todos os primeiros shows da minha vida. Ele se sentia o tutor da Elza Soares.

"Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça, é Elza menina que vem e que passa...."


CD "VIVO FELIZ", que Elza autografou quando a encontrei